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Congresso Brasileiro de Infectologia

Estes textos foram produzidos a partir da iniciativa “Queremos ouvir tua voz” do projeto Vozes, em que Morgana Masetti e Carla Vergara escutaram as narrativas de médicos e médicas, da linha de frente, entrevistados por vídeo durante a pandemia por Covid-19. Eles foram partilhados no encerramento do Congresso Brasileiro de Infectologia, realizado pela SBI no dia 17/12/2021, em Goiânia. Para o congresso, um vídeo foi especialmente produzido a partir do recorte “Sofrimento Psíquico e Vocação Médica”.
Neste link você pode assistir estas entrevistas, que estão publicadas em pequenas pílulas temáticas.

MORGANA MASETTI
Como nos tornamos porosos? Esta é a pergunta que pousa sobre mim quando penso o que tem sido escutar e, de alguma forma, participar das narrativas dos profissionais de saúde que estão atuando na linha de frente da pandemia. São quase 40 anos trabalhando junto com estes profissionais e nunca estivemos tão porosos como nestes últimos tempos. A couraça construída ao longo da formação acadêmica se dissolveu. Escorreu em meio às lágrimas.
Após todo esse tempo de convivência, nunca foi tão marcante a pessoa para além do papel profissional. O evento da pandemia, favoreceu perceber sensibilidades da pele cuja formação profissional, ato após ato, vai cobrindo com suor, silêncios, distanciamentos e condutas científicas que justificam o ato médico. A impotência gerada pelo desconhecimento de um novo vírus, puxou o tapete do contexto sobre o qual nós, profissionais de saúde, nos sustentamos prioritariamente: o conhecimento científico. Foi a partir desta sala vazia que começamos a trocar olhares. Um tatear no desconhecido que nos faz perceber a porosidade da pele.
Escuta e acolhimento. Nunca estas palavras disseram tanto. Parecia um ato mínimo, ligar as câmeras e começar a gravar depoimentos com uma única pergunta de partida: o que você gostaria de contar sobre a tua experiência durante a pandemia? Rastilho de pólvora e fósforo. O que vem depois incendeia.

CARLA VERGARA
O que você gostaria de contar sobre a tua experiência durante a pandemia?
É tudo tão veloz! Cem, duzentas, quinhentas, mil, duas mil pessoas por dia, no mundo todo, em todos os mundos. Foram almas devastadas, cantos calados, sonhos em vão. Tomar contato com decisões cruéis, encarar a negação e receber a notícia do meu pai.
Morreu de covid, médico, 68 anos. Queria atender o maior número de pessoas possível. Partiu após 22 dias de internação levando a parte minha que ainda não olhava para a morte.
O que você gostaria de contar sobre a tua experiência durante a pandemia?
“Tenho provas que a pessoa escuta mesmo estando sedada. Paramentei a filha e permiti que ela se despedisse de sua mãe. A mulher, internada, sonhou que o marido morreu em outro hospital, corremos atrás para saber com ajuda da assistente social. Eu só queria um bolo, carinho faz tanta diferença! Recebi o melhor tratamento médico, mas foi Deus quem me curou. Nos grupos expressamos a raiva das decisões anti-ciência. Tantas mortes, ao mesmo tempo, não é natural. Somos os olhos, a voz e o toque de um ente querido.”
Escutar convida a estar junto. Cada entrevista revela uma posição de enfrentamento e, assim, adicionamos camadas ao tecido memorial de que somos feitas. Deslocamos eixos e caminhamos vestidas de palavras, silêncios, olhares, ritmos, lágrimas, espasmos. Com elas compomos novas densidades. O alcance é infinito.
Dra Isadora, Dra Karen, Dra Tania Vergara, Dra Tania Dias, Dr Marcelo, Dr Jose nos levam a lugares que se ligam pelo fio da humanidade. O que se destaca em suas vozes é o afeto.
Medo do contágio, raiva pelo descaso, tristeza nos lutos, perplexidade nos abismos sociais, saudade no isolamento, solidão nas internações. Há dor no hiato das vidas e horror no volume das mortes. Insônias, ansiedades, sustos, surtos, vícios, machucados no corpo, rachaduras na alma.

MORGANA MASETTI
A pandemia colaborou para horizontalizar as relações. Muitos profissionais viraram pacientes e, quando voltaram a linha de frente, já não eram mais os profissionais que foram um dia. A presença da morte ajudou a cuidar de relações e fortalecer laços afetivos. O luto passou a ser de todos nós em maior ou menor grau. Vivemos um tempo onde pudemos conjugar de forma próxima as palavras fé e ciência, espiritualidade e medicina, cuidado e envolvimento emocional.
Uma das palavras que mais escutamos nos depoimentos foi medo. Medo de ficar doente, medo de transmitir, medo de morrer. Mas esta pandemia também trouxe a poética deste medo: a devoção com medo. Os que decidiram permanecer na linha de frente foram fundo em suas jornadas de trabalho, em sua dedicação, em seu cansaço, em seus esforços sem dia nem hora, apesar do medo.

CARLA VERGARA
A metáfora da guerra atravessa o tempo. Armas, armaduras, tropas, estratégias, forças, feridas. Profissionais da linha de frente se asfixiando diante do que é imenso: somos frágeis, estamos expostos, perdemos a pose e a posse do futuro. Os sintomas do presente são dedos nos olhos.
Vê: o cansaço de nossos modos transforma as relações. Na relação consigo próprio, trabalhar reencontra-se com a vocação. O contato com a raiz nutre e fortalece o sentido: cuidar. O cuidado vence os protocolos, fura os estratos, transcende os instituídos. Médicos, pacientes, familiares e equipes de saúde se reorganizam para torná-lo possível.
Desvendar é uma urgência que une, e que também escancara a polarização política que exibe-se nas esferas, nas telas dos celulares, nos números espetaculares: o Brasil se torna um escândalo.

MORGANA MASETTI
Esta é a história do Dr Clovis , Dr Carlos, Dra Isabel, Dra Beatriz, Dr Pedro, Dr Thor, e tantas pessoas que não estão nomeadas mas que vivem através destes relatos, olhares e emoções . Que vivem através destas vozes.
As pessoas não apenas vivem suas vidas como também imaginam a vida que vivem e as histórias expressam essa imaginação. Estas histórias falam de qualidades existenciais para as quais não há uma métrica. Nosso desafio é transformar narrativas de sofrimento em uma jornada de busca para o que está além e, a partir delas, criarmos um território para habitar. Transformar vozes, tempo, espaço, enredos em espessuras do cuidado.
Acredito que isto seja possível através da palavra. A palavra é criadora e instaura novos mundos. Através dela damos a possibilidade que aspectos sutis de nossa existência se manifestem. Por isso atividades que consideram e cuidam das palavras não são atividades ocas. Quando usamos a palavra, do que estamos tratando é de como damos sentido ao que somos e ao que nos acontece, de como correlacionamos palavras e coisas, de como nomeamos o que vemos e sentimos, de como vemos e sentimos o que nomeamos.
A crise dos afetos acontece quando somos expulsos desse exercício com a linguagem, quando não conseguimos experimentar o que é comum nem comunicar o que se passa conosco. A crise da palavra é a crise do desencontro entre palavra e experiência, crise da comunicação de vivências em espaços comuns, crise da capacidade de inventar novos significados. Por isso, buscar palavras que permitam expressar experiências é de vital importância para cuidarmos e promovermos saúde. Esta é a história de alguns, mas que fala de tantos. Ao escutá-las adentremos um campo de encontro das nossas humanidades.
Esta é a história de uma brecha que se abre no campo da medicina para pensarmos saúde, um espaço de oportunidade. Honrar este momento é cuidar desta brecha para aprender e transformar.

CARLA VERGARA
A abertura de minha escuta para este projeto se deu justamente para perceber as tais brechas que se abrem quando algo tão violento invade a vida. A violência que invade a vida também pode produz vida, pois desarticula elementos que eram circuitos fechados nos modos de estar no mundo. Aconteceu com os médicos, que se reinventaram em muitas direções para cuidar da vida.

Em outra camada de meu desejo, o que me deu a dose extra de coragem para caminhar neste projeto, foi a confiança de que luto é algo a ser trabalhado em níveis mais profundos. Na morte por covid, na morte do meu pai, médico, por covid, uma morte sem enterro, sem o abraço dos amigos, sem horizontes para o fim do caos, no jogo pleno de incerteza e do absurdo, eu senti que precisava ser ativa em criar situações para movimentar os afetos que um trauma paralisa. Nas palavras dos médicos fui acordada em minhas dores, alegrias e toda sorte de experiência.

Descobri muita coisa. Fiquei descoberta exposta, em carne viva. Com esta carne me reconheço em minha linhagem, faço outras composições e lanço estrelas no porvir.
O que nos espera?
Nos grandes incêndios das florestas, o que sobram são cinzas concentradas de nutrientes da vida destruída.
Para que haja regeneração é preciso um rápido plantio de diferentes espécies, algumas de rápidos ciclos, outras com tempo mais longevo para o crescimento.
As diferenças dançam no tempo, criam condições mútuas, regeneram o território por meio da cooperação. Quanto maior a biodiversidade, mais chances de perpetuar a vida.
A monocultura é o anúncio do fim.
O cultivo da diferença é a possibilidade dos inícios.
Que as sementes sejam plantadas nos corações das terras devastadas.

Sementes: medicina, ciência.
Sementes: um ouvido, um abraço, um café, um carinho, uma bebida quente, um lenço, um banho de mar, um poema do Leminski:

Contranarciso
em mim
eu vejo o outro
e outro
e outro
enfim dezenas
trens passando
vagões cheios de gente
centenas
o outro
que há em mim
é você
você
e você
assim como
eu estou em você
eu estou nele
em nós
e só quando
estamos em nós
estamos em paz
mesmo que estejamos a sós